O conceito de "criança interior" é somente uma figura de linguagem, afinal já somos adultos, mas muitas vezes este conceito evoca reações mistas. Alguns podem vê-lo como uma ideia caprichosa reservada para a nostalgia da infância, enquanto outros o reconhecem como um reencontro, elemento profundo de cura psicológica. É exatamente o conceito de “elemento profundo” que nos apegaremos. Uma regressão consciente, revendo, revivendo, reavaliando, consertando, reescrevendo, mudando...
O trabalho da criança interior nos convida a nos reconectar
com as partes mais jovens de nós mesmos que ainda influenciam nossos
comportamentos, crenças e emoções. Essas partes não são apenas remanescentes de
nosso passado, mas participantes ativos em nossas experiências presentes. Ao
reconhecer e nutrir nossa criança interior, desbloqueamos caminhos para a cura
e a autodescoberta.
O que é a Criança Interior?
A criança interior representa as versões mais jovens de nós
mesmos que carregam as emoções, experiências e crenças formadas em nossos anos
de formação. Essas partes encapsulam a alegria, a curiosidade e a diversão da
infância, mas também podem conter a dor, o medo e as necessidades não atendidas
daquela época. Essas primeiras experiências moldam como vemos a nós
mesmos e ao mundo, muitas vezes operando abaixo de nossa consciência.
Quando as feridas não resolvidas da infância persistem, elas
influenciam nossa vida adulta de maneiras que podem parecer inexplicáveis. Você
já reagiu desproporcionalmente a um pequeno desentendimento ou sentiu uma sensação inexplicável de vergonha, ou inadequação? Essas reações podem resultar
de uma criança interior não curada em busca de validação e cuidado.
A criança interior também nos conecta a versões de nós mesmos, moldados durante momentos cruciais em nossas vidas. Pense em
você como uma boneca russa e as versões de você em diferentes pontos sendo
armazenadas dentro do você adulto de hoje. Essas camadas representam as partes
de nós que se adaptaram para se proteger contra danos, muitas vezes por meio de
comportamentos como defensividade, evitação ou superação. Compreender essas
camadas nos ajuda a nos aproximar com compaixão e integrar todas as partes de
quem somos.
Os Sete Arquétipos (1) da Criança Interior
Esses arquétipos, inspirados em estruturas como as
exploradas em “Como fazer o trabalho”, da psicóloga Nicole Le Pera, refletem
padrões comuns moldados por experiências no início da vida:
1. O Zelador: Este arquétipo prioriza as necessidades dos
outros sobre as suas, muitas vezes derivando autoestima do cuidado. Esse padrão
pode resultar de experiências iniciais de assumir a responsabilidade pelos
outros, muitas vezes às custas de receber amor incondicional.
2. O Superdotado: Impulsionado por uma necessidade
implacável de desempenho e sucesso, esse arquétipo iguala merecimento a
realizações. Uma infância marcada por altas expectativas pode criar essa
narrativa interior.
3. O Fracassado: Temendo o fracasso e as críticas, esse
arquétipo evita desafios, muitas vezes deixando o potencial inexplorado. A
pressão esmagadora para alcançar resultados durante a infância pode promover
essa mentalidade.
4. O Salvador/Protetor: Esse tipo busca controle e validação
salvando os outros, muitas vezes supercompensando as primeiras experiências de
desamparo.
5. A Vida da Festa: Mascarando a dor com humor e
positividade, esse arquétipo aprendeu que expressar emoções difíceis levava à
rejeição ou desaprovação.
6. A Pessoa Sim: Lutando para estabelecer limites, esse
arquétipo prioriza agradar os outros, muitas vezes a um custo pessoal. A crença
de que o amor deve ser conquistado por meio da conformidade muitas vezes
sustenta esse comportamento.
7. O Adorador de Heróis: Buscando a validação de figuras
admiradas, esse arquétipo muitas vezes parece indigno de aceitação. A
dependência excessiva de cuidadores durante a infância pode contribuir para
esse padrão.
Ao identificar quais arquétipos ressoam com você, você obtém
uma compreensão mais clara dos comportamentos e crenças enraizados em sua
criança interior. Também é importante reconhecer que a maioria das pessoas
incorpora mais de um arquétipo, com certas características se tornando
dominantes com base nas circunstâncias da vida.
Terapia de Trabalho em Partes: Apoiando a Cura da Criança
Interior
O trabalho da criança interior geralmente se alinha com a
terapia de trabalho parcial, que reconhece a natureza multifacetada do eu. Cada
um de nós é composto de partes distintas, incluindo a criança ferida, o crítico
protetor e o cuidador carinhoso. Essas partes se desenvolveram para nos ajudar
a sobreviver e lidar com os desafios do passado, mas também podem criar
conflitos internos.
Por exemplo, a parte protetora de você pode criticar ou
suprimir as emoções de sua criança interior para evitar a vulnerabilidade.
Outra parte pode buscar conexão e, ao mesmo tempo, temer a intimidade,
refletindo a dor não resolvida da infância. A terapia de trabalho por partes
oferece uma estrutura para explorar e reconciliar essas dinâmicas, criando
espaço para que sua criança interior se sinta vista, segura e apoiada.
Ao abordar esses conflitos internos, você aprende a validar
e abraçar sua criança interior, em vez de ignorar ou descartar suas
necessidades. Esse processo de diálogo entre as partes promove um senso de
harmonia e integração, tornando-se uma abordagem poderosa para a cura da
criança interior.
Liberando os fardos da criança interior
Muitas das feridas mantidas por sua criança interior podem
parecer dolorosas demais para enfrentar sozinhas, e é por isso que partes de
você trabalham incansavelmente para se proteger contra elas. Essas partes
protetoras não são adversárias; eles são aliados fazendo o possível para
protegê-lo do desconforto. No entanto, suas estratégias, como evitação ou
autocrítica, podem não servir mais para você.
Liberar os fardos de sua criança interior envolve entender
esses mecanismos de proteção e criar um espaço seguro para sua criança interior
expressar suas necessidades e emoções não atendidas. Através deste trabalho,
você pode:
Reconheça as partes protetoras: Reconheça como elas o
ajudaram a sobreviver a experiências difíceis.
Expresse gratidão: Agradeça a essas partes por seus
esforços, mesmo quando você as convida a suavizar suas defesas.
Apoie sua criança interior: Com seu eu sábio e centrado no
presente, conforte sua criança interior, oferecendo o amor, a validação e a
proteção que ela não recebeu no passado.
Esse processo não apenas libera a dor emocional, mas também
reconecta você com a alegria, a curiosidade e a criatividade de sua criança
interior. Ao nutrir sua criança interior e convidar a cura, você permite que
seu eu autêntico surja.
Passos práticos para o trabalho da criança interior
O trabalho da criança interior pode assumir muitas formas,
desde o diário até meditações guiadas. Abaixo estão alguns passos para ajudá-lo
a se conectar com sua criança interior:
1. Visualize sua criança interior: Imagine encontrar seu eu
mais jovem em um espaço seguro e reconfortante. Como eles se parecem? Que
emoções eles transmitem?
2. Valide seus sentimentos: Fale com sua criança interior
com empatia, afirmando que suas emoções são válidas e que não são culpadas
pelas dificuldades do passado.
3. Ofereça carinho: visualize fornecer à sua criança interior o cuidado, a proteção ou o amor que faltava. Isso pode envolver segurar a mão deles, falar palavras gentis ou criar um espaço seguro para eles.
4. Aborde as necessidades não atendidas: Reflita sobre o que
sua criança interior precisava durante tempos difíceis. Imagine oferecer esse
apoio agora como seu eu atual.
5. Escreva uma carta: Escreva uma carta para sua criança
interior, expressando compreensão, amor e segurança.
6. Torne-se um viajante do tempo: revisite as memórias com a
perspectiva do seu eu adulto. Imagine entrar nesses momentos, oferecendo
cuidado, proteção e validação ao seu eu mais jovem. O que você percebe ao
trazer cura para essas memórias?
7. Procure apoio profissional: Um terapeuta de trauma pode
guiá-lo por camadas mais profundas e complexas do trabalho da criança
interior, garantindo que você se sinta apoiado e seguro.
Autocompaixão e cura de traumas infantis
A dor do trauma relacional não resolvido da infância geralmente se apresenta como pensamentos autocríticos, sentindo-se intolerantes com nossos erros ou engajando-se em comportamentos de automutilação. A autocompaixão transforma a dor, permitindo-nos responder ao nosso sofrimento com calor e gentileza.
A recuperação do trauma envolve duas ações principais:
Reduzindo a conversa interna negativa: Estabelecer limites
para pensamentos e comportamentos autocríticos que perpetuam o dano.
Praticando comportamentos amorosos: Envolver-se em atos
repetidos de bondade e cuidado consigo mesmo.
Quando nos conectamos com nossa criança interior, cultivamos
os mesmos sentimentos carinhosos que os adultos amorosos oferecem às crianças.
Essa experiência reparadora ajuda a criar uma sensação de segurança e
resolução.
Uma jornada ao longo da vida
Curar a criança interior não é um evento único, mas uma
prática contínua. Haverá momentos de progresso e momentos em que velhas feridas
ressurgirão. Isso faz parte do processo. Cada passo que você dá aprofunda sua
conexão consigo mesmo e abre caminho para uma vida mais autêntica e
gratificante.
Ao abraçar sua criança interior com curiosidade, compaixão e
coragem, você honra a resiliência dentro de você, essa jornada pode levar a uma
transformação profunda.
Se você está pronto para explorar sua criança interior e
embarcar em uma jornada de cura, considere trabalhar com um terapeuta de
trauma. Juntos, vocês podem criar um espaço seguro para nutrir as partes
feridas de si e abraçar a totalidade que sempre foi sua.
(1) Arquétipo é um modelo original que
serve como exemplo para algo do mesmo tipo. Pode ser um protótipo, um modelo
ideal ou um padrão de comportamento.