Resumo
Muitas vezes utilizam-se termos como automutilação, autolesão e autoagressão como tendo uma definição comum. O presente artigo visa clarificar estes conceitos e chamar a atenção para o que a sociedade aceita e recrimina.
Introdução A história tem dado inúmeros exemplos de comportamentos autoagressivos, identificados em várias culturas e ao longo do tempo, desde a amputação dos dedos no Pacífico e África, a perfuração da cartilagem nasal em algumas tribos africanas e americanas, o esticar do pescoço e lábios nalgumas culturas africanas, apertar os pés com sapatos pequenos para evitar o seu crescimento numa tribo da Ásia, a crucificação e autoflagelamentos num contexto religioso nas Filipinas, a perfuração dos lobos das orelhas, tatuagens e piercings nas civilizações ocidentais (Cordeiro & Venâncio, 2004).
Em primeiro lugar, é necessário contextualizar os comportamentos autoagressivos, porque se uns estão associados a práticas e crenças culturais e religiosas, outros são do foro psiquiátrico.
Os primeiros estão associados a rituais e têm uma componente simbólica subjacente de ligação do sujeito à sua cultura. Podem ter vários objetivos como o de curar, marcar posição social ou serem expressão de espiritualidade. Estes refletem uma tradição da comunidade e funcionam como uma via do sujeito se inserir na mesma. As práticas procuram a ornamentação ou mostrar identificação para com um determinado grupo cultural, são passageiras e, por isso, têm pouco significado para o sujeito (Bolognini, Plancherel, Laget, Stéphan & Halfon, 2003; Favazza, 1996). Nestas autoagressões não parece existir uma componente afetivo-emocional, mas sócio-cultural ou religiosa.
Habitualmente, os piercings e as tatuagens costumam ser aceites socialmente (Cordeiro & Venâncio, 2004), embora sejam atos autoagressivos. No entanto, comportamentos autolesivos, automutilantes, tentativas de suicídio, suicídio ou outros prejudiciais a longo termo, onde o dano físico imediato não é o efeito desejado (tal como os comportamentos aditivos), constituem atos autoagressivos, considerados como patológicos, quer na sociedade, quer no foro psiquiátrico, não comportam nenhum valor simbólico no seu meio sócio-cultural ou religioso, nem são realizados por uma maioria dos sujeitos pertencentes a este meio (Simeon & Hollander, 2001).
Definição A agressão é uma característica que pode surgir sob a forma de hétero-agressão, quando é direcionada contra objetos/outro/animais, verbal ou fisicamente. Quando é virada contra o próprio, toma a forma de autoagressão, por autolesões, automutilações, tentativas de suicídio e suicídio.
As autolesões caracterizam-se por serem lesões corporais, moderadas, sobre o próprio, sem qualquer ideação suicida (Stanley, Gameroff, Michaelsen & Mann, 2001; Klonsky & Olino, 2008) ou prazer sexual, sem intervenção de outrem e que lhe causaram danos físicos ou ferimentos e alívio da tensão sentida anteriormente. Não costumam ser uma tentativa falhada de suicídio, mas sim uma tentativa de manter a integridade psicológica do sujeito que não tem estratégias adequadas para lidar com todos os seus sentimentos que lhe são insuportáveis e tensões causadas por estes (Maltesberg & Lovett, 1992). Russ et al. refere que o objectivo destas é a descarga de tensão e servir para desviar a “atenção” de sentimentos muito dolorosos e sentidos como insuportáveis (citado por Millon & Davis, 2001). Alguns exemplos são a ingestão de objetos cortantes e pedaços de roupa, arrancar peles/pelos, bater em si próprio, interferir com a cicatrização de ferimentos, inserir objetos nas feridas, autos sufocação e morder-se. Os mais frequentes são as queimaduras e os cortes nos pulsos, pernas e braços, bem como arranhões.
Muitas vezes o termo automutilação é utilizado incorretamente, quando se refere a autolesões (Simeon & Favazza, 2001; Walsh, 2006). As automutilações são comportamentos autoagressivos mais graves, tais como as amputações de membros, enucleação ocular e castração. Levam a uma destruição irreversível do corpo e, frequentemente, ameaçam a vida. Estas costumam surgir num contexto alucinatório em que o sujeito obedece a vozes de comando ou num contexto de delírios em que o tema é o pecado, a salvação, a autopunição e as tentações de cariz sexual. (Scharbach, 1986).
Para Kreitman, o parasuicídio é caracterizado por actos deliberados com consequências não fatais (citado por Cordeiro & Venâncio, 2004) e inclui as autolesões (onde se inclui a ingestão de substâncias/objetos, interferência na cicatrização, tal como na síndrome de Munchausen), os comportamentos aditivos (como o alcoolismo crónico e o abuso de substâncias), as automutilações, as perturbações alimentares ou a recusa dos tratamentos médicos, entre outros já descritos. No entanto, se esta recusa nos tratamentos surgir perante uma doença em fase terminal com o objectivo de abreviar a morte, deve-se considerar como tentativa de suicídio.
Gardner & Cowdry defendem que, apesar da ausência de ideação suicida, pode ocorrer um suicídio acidental, quer pelo aumento da frequência ou pela severidade do comportamento (citado por Maltsberger & Lovett, 1992). No entanto, nas autolesões e automutilações, alguns destes sujeitos podem, mais tarde, tentar o suicídio, escolhendo um método diferente daqueles utilizados habitualmente nos seus comportamentos autolesivos. Outros, ainda, podem apresentar um sentimento de ambivalência face à intenção do acto, tornando difícil a avaliação da ideação suicida (Cordeiro & Venâncio, 2004).
Conclusão
A autoagressão, sendo um conjunto de atos deliberados, com intenção de provocar lesões ou mesmo a morte, é constituída por vários tipos, o parasuicídio, tentativas de suicídio e suicídio. O parasuicídio inclui, por sua vez, a autolesão e a automutilação. Nesta diferenciação é importante, também, saber identificar e enquadrar estes atos, para evitar considerar patológico um determinado comportamento quando este está inserido num contexto e simbolismo sócio-cultural ou religioso.
Acima de tudo é necessário reconhecer o sofrimento que esta dimensão da agressão causa no próprio e nos outros que o (a) rodeiam.
Adaptação
Múcio Morais
Palestrante - Educador
muciomorais@gmail.com
Carla Maria Almeida
Laboratório Psicologia Médica da Faculdade de Medicina de Lisboa
cmalmeida@fm.ul.pt
Purificação Horta
Coordenadora do Laboratório de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina de Lisboa
horta@fm.ul.pt
______________________
Referências
Bolognini, M., Plancherel, B., Laget, J., Stéphan, P., & Halfon, O. (2003). Adolescents’
self-mutilation –relationship with dependent behaviour. Swiss Journal of Psychology 62 (4), 241–249.
Cordeiro, A. M. & Venâncio, A. (2004). Automutilação: para lá do sintoma. Psiquiatria Clínica, 25 (3), 173-184.
Favazza, A. R. (1996). Bodies Ander siege: Self-mutilation and body modification in culture and psychiatry. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press.
Klonsky, E. D., & Olino, T. M. (2008). Identifying clinically distinct subgroups of self-injurers among young adults: a latent class analysis. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 76, (1), 22–27.
Maltsberger, J. T., & Lovett, C. G. (1992). Suicide in borderline personality disorder. In D. Silver & M. Rosenbluth, (Eds.), Handbook of borderline disorders (pp.335-387). Madison: IUP.
Millon, T., & Davis, R. (2001). Transtornos de la personalidad em la vida moderna. Barcelona: Masson.
Simeon, D., & Favazza, A. (2001). Self-injurious behaviors: Phenomenology and assessment. In D.Simeon & E. Hollander (Eds.), Self-injurious behaviours, assessment and treatment (pp. 1–28). Washington, DC: American Psychiatric Publishing.
Simeon, D., & Hollander, E. (2001). Self-injurious behaviours, assessment and treatment. American Psychiatric Publishing, Inc.
Scharbach, H. (1986). Auto-mutilations et auto-offenses. Paris : Presses Universitaires de France.
Stanley, B., Gameroff, M. J., Michalsen, V., & Mann, J. J. (2001). Are suicide attempters who self-mutilate a unique population? American Journal of Psychiatry, 158 (3), 427-432.
Walsh, B. W. (2006). Treating self-injury: A practical guide. New York: Guilford Press.
Carla Maria Almeida
Laboratório Psicologia Médica da Faculdade de Medicina de Lisboa
cmalmeida@fm.ul.pt
Purificação Horta
Coordenadora do Laboratório de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina de Lisboa
horta@fm.ul.pt
______________________
Referências
Bolognini, M., Plancherel, B., Laget, J., Stéphan, P., & Halfon, O. (2003). Adolescents’
self-mutilation –relationship with dependent behaviour. Swiss Journal of Psychology 62 (4), 241–249.
Cordeiro, A. M. & Venâncio, A. (2004). Automutilação: para lá do sintoma. Psiquiatria Clínica, 25 (3), 173-184.
Favazza, A. R. (1996). Bodies Ander siege: Self-mutilation and body modification in culture and psychiatry. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press.
Klonsky, E. D., & Olino, T. M. (2008). Identifying clinically distinct subgroups of self-injurers among young adults: a latent class analysis. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 76, (1), 22–27.
Maltsberger, J. T., & Lovett, C. G. (1992). Suicide in borderline personality disorder. In D. Silver & M. Rosenbluth, (Eds.), Handbook of borderline disorders (pp.335-387). Madison: IUP.
Millon, T., & Davis, R. (2001). Transtornos de la personalidad em la vida moderna. Barcelona: Masson.
Simeon, D., & Favazza, A. (2001). Self-injurious behaviors: Phenomenology and assessment. In D.Simeon & E. Hollander (Eds.), Self-injurious behaviours, assessment and treatment (pp. 1–28). Washington, DC: American Psychiatric Publishing.
Simeon, D., & Hollander, E. (2001). Self-injurious behaviours, assessment and treatment. American Psychiatric Publishing, Inc.
Scharbach, H. (1986). Auto-mutilations et auto-offenses. Paris : Presses Universitaires de France.
Stanley, B., Gameroff, M. J., Michalsen, V., & Mann, J. J. (2001). Are suicide attempters who self-mutilate a unique population? American Journal of Psychiatry, 158 (3), 427-432.
Walsh, B. W. (2006). Treating self-injury: A practical guide. New York: Guilford Press.