Relações de Gênero nas Escolas: ainda é possível falar disso?
Embora nem sempre o tema seja muito comentado, as assimetrias de gênero na educação impactam não apenas o cotidiano escolar, mas também revelam as desigualdades na aprendizagem entre meninos e meninas. Os dados do Programa Internacional de Avaliação de Aluno/as (PISA, 2015) apontam que meninos têm resultados superiores na aprendizagem de matemática em relação às meninas, que apresentam melhores resultados na aprendizagem de conteúdos de linguagem.
A análise desses dados explicita a
reprodução (e a naturalização) da desigualdade de gênero na escola: a
inequidade do aprendizado entre meninos e meninas revela a desigualdade também
do ensino. Há uma hierarquia dos conteúdos, que valoriza mais a habilidade
matemática decorrente do raciocínio lógico, característica atribuída aos
homens, enquanto que a habilidade de linguagem e comunicação é associada à
sensibilidade, traço visto como próprio das mulheres.
No dia a dia da escola, a prática
de violência de gênero — psicológica, física ou sexual, que se dá entre meninos
e meninas, meninas e meninas ou meninos e meninos — é outro fenômeno que revela
a desigualdade de gênero no espaço escolar e que, certamente, contribui para as
dificuldades de aprendizagem e para o baixo rendimento escolar. É importante
ressaltar que é comum a violência também entre pessoas do mesmo sexo, na maior
parte das vezes entre meninos, seja para demonstração de força, seja por
intolerância às manifestações de sexualidade não heteronormativas. Como aponta
Richard Miskolci (2012), na escola se explicitam, na maior parte das vezes de
forma impositiva e violenta, os ideais coletivos de como as pessoas devem agir,
se comportar, numa palavra, ser. Essas expressões de violência revelam que a
opressão de gênero não se dá apenas entre homens e mulheres, é, aliás, muito
comum entre homens que, na verdade, constroem sua masculinidade, desde a mais
tenra idade, de modo agressivo, usando a força. A violência é percebida e
ensinada como um valor masculino.
Embora sejam problemas de grande
complexidade, as dificuldades de aprendizagem e a violência de gênero muitas
vezes têm explicações reducionistas e essencialistas, que atribuem as
desigualdades à natureza (feminina e masculina) ou à diferença na socialização
de meninos e meninas.
Desde 2015, por meio de uma
parceria entre a Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte e os
Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais e Psicologia e a Pró-Reitoria de
Extensão da PUC Minas, temos realizado projetos de intervenção que visam à
formação continuada de professoras/es nas questões relativas ao gênero, para
que possam, no cotidiano escolar, contribuir para a promoção da equidade nesse
âmbito. É sobre essa experiência que este artigo pretende refletir e, para
tanto, é importante explicitar como vem sendo realizado o projeto.
Em 2015, a elaboração e o
lançamento do Caderno das “Diretrizes da Educação para as Relações de Gênero na
Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte” buscava a um só tempo
problematizar as assimetrias de gênero comuns na escola e contribuir com a
construção de práticas pedagógicas e políticas públicas educacionais de
enfrentamento às práticas sexistas nas escolas (BELO HORIZONTE, 2015).
A partir das demandas das/os
docentes apresentadas em 2015, foram realizados os projetos “Meninas e Meninos
aprendem a mesma coisa? Desigualdades no processo de ensino e aprendizagem”, em
2016, e “Gênero, Educação e Cultura: Estratégias de Intervenção”, em 2017.
Ambos tinham como objetivo, além da formação de professoras/es da Rede
Municipal de Educação no campo teórico-metodológico de gênero, contribuir para
o delineamento de políticas públicas educacionais comprometidas com a equidade
de gênero (MOREIRA et al, 2017).
Em um primeiro momento foi
realizado um diagnóstico para que compreendêssemos o perfil do corpo docente
(sexo, idade, estado civil, religião) e uma pergunta que se referia às
diferenças de interesse/aprendizagem entre meninos e meninas. Não cabe aqui
detalhar, mas a análise dos questionários, de modo geral, revelou que as
explicações em relação às diferenças e aos papéis sociais de meninos e meninas
eram de modo geral essencialistas, seja do ponto de vista da natureza (por
exemplo, as meninas são mais frágeis e têm atenção difusa, enquanto os meninos
são fortes e focados) seja do ponto de vista da cultura (a socialização
desigual era vista quase como destino, sem possibilidade de mudança); além
disso, explicitou-se também a dificuldade em tratar do tema pedagogicamente na
sala de aula e, em alguns casos, havia resistência de caráter pessoal, moral e
religioso na própria problematização (e desconstrução) dos estereótipos de
gênero. Ademais, no cenário político nacional e transnacional com a falaciosa
ideologia de gênero, o movimento da escola sem partido e a presença de grupos
conservadores nas instâncias federal, estadual e municipal com intuito de
coibir a discussão nas escolas, é produzido certo pânico moral (MISKOLCI e
CAMPANA, 2017) disseminado entre professores/as e gestores/as de escolas com
reflexo nas relações com a comunidade escolar.
Depois de analisado o
diagnóstico, foram realizadas, em 2016 e 2017, aulas expositivas e seminários
teóricos sobre o tema, rodas de conversa e seminários de encerramento com
demandas propostas pelos/as docentes (2016) e apresentação pelas/os docentes de
casos ocorridos nas escolas e discussão/problematização a partir do campo
teórico-metodológico das relações de gênero. Em 2017, foi constituído experimentalmente
um grupo de estudos docente sobre “gênero, educação e cultura”, que realizava
encontros mensais no Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte, tendo como
mote a discussão das feminilidades e das masculinidades nos espaços culturais.
A partir da avaliação processual
das experiências de 2015 a 2017, a ideia em 2018 foi criar estratégias
formativas que a um só tempo não interrompessem o processo e respondessem às
demandas das/os docentes que agora percebiam com mais eficácia os impactos das
assimetrias de gênero no cotidiano escolar, tanto no que se refere às relações
entre os/as estudantes quanto no que diz respeito à aprendizagem. As/os
professoras/es demandavam ferramentas pedagógicas que contribuíssem para a
intervenção no cotidiano escolar.
Assim, em 2018, foi realizado o
projeto “Educação e Equidade: assimetrias entre meninos e meninas na escola” em
quatro escolas localizadas em diferentes regionais da cidade de Belo Horizonte.
O critério de escolha das escolas teve como base a participação em ações dos
anos anteriores, desenvolvimento de projetos pedagógicos sobre a temática e
interesse pela continuidade da discussão. No primeiro contato com a direção e
coordenação pedagógica das escolas selecionadas, foram explicitados os
objetivos do projeto, o cronograma de ações, o compromisso ético da pesquisa e
o processo de inscrição e acompanhamento docente.
Simultaneamente aos encontros
mensais com docentes inscritos/as, dessa vez realizados no campus da PUC Minas,
foi feita uma pesquisa de campo nas quatro escolas, com observação participante
do cotidiano, conversas informais e entrevistas semiestruturadas com docentes.
Para tanto, contamos com a colaboração de estudantes extensionistas dos
Programas de Pós-Graduação em Psicologia e Ciências Sociais da PUC Minas. A
partir dessa experiência é possível apontar algumas práticas de desigualdade de
gênero naturalizadas na escola, como, por exemplo, uso das quadras de esporte
preferencialmente por meninos durante os intervalos, enquanto as meninas
ficavam nos cantos conversando, posturas diferenciadas de docentes com meninos
(tratados com rigor e severidade) e com meninas (tratadas com carinho e
delicadeza), atividades por gênero na educação integrada (oficinas de dança
para meninas e oficina de tambor para meninos), filas de meninas e meninos e
ausência das discussões de gênero em materiais didáticos e paradidáticos
comumente utilizados em sala de aula.
Em 2019, diversificamos mais uma
vez as ações: foram realizados 1. Estado da arte em plataformas de pesquisas
acadêmicas nacionais a partir das palavras-chave: gênero, educação,
diversidade, equidade e sexualidade; 2. Levantamento de questões de gênero, ou
da ausência delas, em livros didáticos usados nas escolas; 3. Participação e
apresentação do histórico da pesquisa no IX Congresso Ibero-americano de
Estudos de Gênero na Argentina; 4. Incentivo e acompanhamento de duas escolas
que se inscreveram no Programa de Escolas Associadas da UNESCO com foco nos
objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), dentre os quais destaca-se o
ODS 5 sobre a igualdade de gênero; 5. Integração no comitê permanente do “Plano
Municipal de Equidade de Gênero” (BELO HORIZONTE, 2019) elaborado pela
Prefeitura de Belo Horizonte a partir da adesão do município à Plataforma 50/50
da ONU Mulheres. Vale ainda destacar que, em 2019, foi assinado
institucionalmente um Acordo de Cooperação entre a Secretaria Municipal de
Educação de Belo Horizonte e a PUC Minas com ações previstas até 2021.
Depois de quatro anos de
experiência, a equipe percebeu que era o momento de avaliar os impactos da
formação e é o que vimos fazendo desde o ano passado. A análise das informações
produzidas até o momento indica que se de um lado há certa sensibilidade para a
observação das consequências das desigualdades naturalizadas de gênero, de
outro lado não há a incorporação do arcabouço teórico-metodológico do campo de
gênero. Desse modo, as/os professoras/es têm dificuldade em planejar de forma
sistemática intervenções que promovam a equidade de gênero conectada à própria
atividade de ensino-aprendizagem. Em outras palavras, as relações assimétricas
só são percebidas nos episódios “problemáticos”, como os atos de violência, as
discrepâncias no desempenho nas avaliações de aprendizagem entre meninos e
meninas ou a utilização desigual do espaço físico da escola. As relações de
gênero não são ainda consideradas como um aspecto do processo de socialização
de meninos e meninas, tampouco como dimensão da própria aprendizagem escolar.
Por fim, no ano de 2020, houve
uma expansão da equipe com a inclusão de uma estudante de doutorado em
Psicologia e duas estudantes de iniciação científica, além das duas
extensionistas. Dessa forma, o conhecimento produzido tende a circular de forma
interdisciplinar em diferentes modalidades acadêmicas. A articulação da
educação básica com a academia propicia a sistematização de saberes, a
verificação de hipóteses, a troca de experiências e a experimentação de outros
possíveis no enfrentamento às desigualdades de gênero nas escolas.
Respondendo à pergunta título
desse texto, sim, é possível e necessário que falemos cada vez mais de gênero
nas escolas, principalmente em um país que ocupa o 5º lugar em feminicídio no
mundo e o 1º lugar no assassinato da população LGBT (segundo dados do Anuário Brasileiro
de Segurança Pública de 2020). Nesse sentido, urge pensar currículos que
escapem da normalização dos lugares de meninas e meninos na educação. Um
currículo que seja inclusivo e permeável às diferenças (PARAÍSO, 2010), um
currículo em ação que promova uma ampliação de consciência sobre o mundo e
sobre o outro. Para além do currículo dito escolar (com disciplinas, horários,
estruturas, regulamentações e sequências), é preciso conceber práticas
curriculares que evidenciem e valorizem as relações de gênero, de raça, de
classe e de idade, sempre com a intencionalidade de promover a equidade entre
meninas e meninos nos processos de ensino e aprendizagem.
Referências:
BELO HORIZONTE. Prefeitura
Municipal. Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte. Diretrizes da
Educação para as Relações de Gênero na Rede Municipal de Educação de Belo
Horizonte. Belo Horizonte, 2015.
BELO HORIZONTE. Diário Oficial do
Município de Belo Horizonte. Secretaria Municipal de Assistência Social,
Segurança Alimentar e Cidadania. Conselho Municipal dos Direitos da Mulher.
Resolução CMDM nº 03, 2019.
MISKOLCI, Richard e CAMPANA,
Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral
contemporâneo. Revista Sociedade e Estado, v. 32, n. 3, set/dez, p. 725-747,
2017.
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um
aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica, UFOP, 2012.
MOREIRA, Maria Ignez Costa et al.
Meninas e meninos aprendem a mesma coisa? Desigualdades no processo de ensino e
aprendizagem. In: ALVES, Cláudio Eduardo Resende e SOUZA, Magner Miranda de.
Educação para as relações de gênero: eventos de letramento na escola. Curitiba:
CRV, 2017.
PARAÍSO, Marlucy Alves. Diferença
no currículo. Cadernos de Pesquisa, v.40, n.140, mai/ago, p. 587-604, 2010.
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